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Espaços

 

Guardarei espaço em minha memória para lembrar os dias em que sorveremos alguma bebida à tardinha, ao massagearemos nossos egos afligidos, ou ainda, afagarmos nossos corpos golpeados e as almas ainda queimando, sem fortuna nem endereço...

Neste lugar farei uma escultura, um tributo póstumo aos que ocuparam nossas vidas... ainda mais, e quiçá melhor, do que nós próprios...

 

Existe uma importância para a vida, um valor, que só distingue quem amou com toda a entrega, sem impaciência, mas com pitada de loucura e desespero, ainda que camuflado, que refreado pelas rédeas da prudência. 

Não posso divergir disso. Fazê-lo significaria unicamente exercitar minha hipocrisia e meia verdade é só a mentira inteira. Não tenho o que argumentar sobre isso. Ou abstrair. 

 

Após tantos dias, de diferentes dores, e de desmedidos vazios, consigo discernir a lição na perda. (E que estrago!...) Assim, destarte, deve ser um ensino de peso, do mais valioso, deste que não se pode passar sem, com o perigo de parar a vida  na sarjeta e ali deixa-la para sempre, estacionada como indigente.

Periodicamente, revejo meus estigmas, minhas cicatrizes, e me explano, descubro, traduzo, mais uma silabazinha entre tantos hieróglifos. 

Dia a dia mais convencida de que, uma vez conhecido esse amor, nunca mais se perpetra por menos. Seu caminho doutrina um estado de existência, uma conexão com o mundo. Isso acontece de tal modo que é imperativo que façamos a travessia do medo.

 

Eis a situação que se introduz. Haverá como cursá-la sem medo? Não acredito.... E no reconhecimento de cada choque, é outra vez o medo quem chega, agora pela conscientização da perda inevitável. 

Mas é isso: há como conhecer, por antecipação, a morte sem receio? Se essa é a condição humana, infligida pela finitude?

Será que a maior lição, aquela tão complexa, está em instruir-se de em novo olhar? 

Onde eternamente nos foi mostrado que o objeto do nosso amor, o que dava sentido a tudo, na verdade, se ocultava atrás dele, o próprio amor como modo de conservação? 

 

Amor que só pode ser íntegro, pleno, cabal, por ter a causa dirigida sempre ao outro e não às mesquinharias das nossas ambições, dos nossos comandos, dos nossos domínios?

Caminho neste fio de navalha. Por vezes, pareço avançar milhas de milhas e, na verdade, no outro dia, acordo absorvida pelo próprio torvelinho, desejando o corpo querido como se nele morasse o segredo,  o mistério todo, a resposta completa, total.

Afaga-me, então, o episódio de que bastam raras horas para que conheça o esvanecer desta urgência, deste me perder por enseadas que não me levam a dois passos de onde estou.

 

Pego meu amor e faço dele o meu culto, recinto de súplica, da minha devoção e da minha probabilidade.

Se lamento alguma coisa?

Além daquele beijo que não dei na garagem de um estranho em um dia de chuva?

Sim, lamento, este tempo em que deixei o amor desamparado, na cárcere dos condenados à prisão eterna, como se fosse ele o carrasco. Que asneira, quanto disparate! Que desperdício o meu.

 

Viva o velho ditado: antes tarde do que nunca.

E no que diz respeito à liberdade, nunca é uma palavra que não existe.

 

Ana Viggiani